Quando Christopher Nolan, cineasta britânico contratado pelos Estúdios Warner, aceitou elaborar a filmagem de um novo filme do Batman, a fé em sua capacidade e no sucesso da obra era pouca. O descrédito, contudo, mostrava-se fundamentado em fatos - no ano de 1997, o diretor Joel Schumacker terminara uma quadrilogia do mesmo herói terrivelmente, numa tentativa pândega, exagerada e com atuações (apesar de conter grandes nomes dos blockbusters estadunidenses) caricatas para transpor histórias dos quadrinhos ao cinema. Logo, o que deveria ser feito por Nolan era um recomeço.
Reiniciar tudo o que, sobre o homem-morcego (desde 1989 com a opereta dark de Tim Burton), havia sido abordado, analisado e conceituado. Principalmente conceituado. Nolan queria mudar os atributos que envolviam esse herói - um milionário defensor da cidade, que usa equipamentos de surreal tecnologia para combater criminosos com duas faces ou desfigurados por ácido, que, utilizando armas que congelam ou fazem rir, atacam civis para roubar bancos e perturbar o "mocinho". Todo esse plano ideal precisava ser tombado e, em seu lugar, uma completamente nova visão deveria ser instaurada - a visão real. Um olhar a fim de ressaltar o psicológico, os dramas, as falhas, as desistências, as lutas interiores (ainda mais destacadas que as exteriores).
Após a estreia de Begins em 2005, as boas bilheterias fizeram com que os estúdios dessem o aval para o segundo filme. Nolan - e sua concepção artística, sobretudo - havia ascendido. A imagem heroica se tornou apenas uma forma - a essência do Batman figurou em The Dark Knight. Essência daquele que luta para cumprir o desígnio de tornar sua cidade limpa do crime e defendê-la não por merecimento, mas por necessidade. A definição de herói havia mudado, assim como a de filme comercial; as enormes bilheterias geradas por esse tipo de filme, como Chris evidenciou, poderiam continuar sendo faturadas inserindo aspectos dramáticos que beiram aos culturais, apesar de manter os efeitos especiais que atraem multidões.
E, portanto, o diretor atingia seu auge - com um salto de fé, arriscando usar métodos pouco apostados, inicialmente, pela grande parte da bancada executiva Warner Bros. Também, portanto, era preciso terminar a história de seu personagem, de seu humano e conturbado protagonista, da complexa arquitetura desse edifício que é a trama a qual construíra - o emaranhado de eventos que transformam uma Gotham City cartum no mais fiel retrato da metrópole norte-americana. Gotham que, tal como a Ilha de Ítaca no imaginário homérico, é fundo incentivador para os desejos de um homem de lutar. Um homem que, de mesmo modo que o clássico herói Ulisses, tem que encontrar seu final, término de uma verdadeira Odisseia - conclusão épica para essa terrível e atormentada jornada.
Conclusão determinando uma última queda, precedendo a mais mítica ascensão.
BATMAN - O CAVALEIRO DAS TREVAS RESSURGE

Por que caímos?
Essa questão citada pelo doutor Thomas Wayne, no primeiro filme assinado por Nolan, evidencia uma enorme iconografia presente nesse longa. É preciso cair para notar as grandes verdades que o auge não possibilitava ver - o fogo que se erguia e era negligenciado, as tempestades que se aproximavam e não eram percebidas devido à crença fiel numa estruturada paz, certeza tão grande que leva a um exílio auto-imposto fundamentado na aparente calmaria que, paradoxalmente, esconde incríveis tormentas.
E Bruce Wayne (o magnata econômico e playboy com dinheiro ratificado por herança, interpretado por Christian Bale) estava no auge. Isolado na reconstruída mansão, assegurando-se da eficiente justiça, dos sistemas políticos e sociais que regiam uma cidade antes, com suas próprias mãos, protegida. Sua obrigação em retornar a vestir o capuz e capa surge como resposta a uma série de atentados contra a funcionalidade democrática ligada ao capitalismo que constituía os pilares de Gotham. Ela é representante da bonança capitalista e a placidez impera nas suas ruas, mas sufoca a indignação de uma população pobre que vê os ricos e empresários multiplicarem suas finanças e aumentarem impérios econômicos enquanto direcionam pequenas atividades filantrópicas a esse povo.
Tal antagonista culpa Batman por ter abandonado Gotham e escondido dos habitantes a realidade sobre seu exemplo de justeza, o falecido promotor público Harvey Dent. Ao apontar o homem-morcego, chama o povo a reclamar sua cidade, a instaurar um regime igualitário utópico através do aniquilamento das classes; delineia, portanto, nesse estado socialista, a definição de idealismo - o estabelecer de uma nova realidade como mascaramento do que é verdadeiramente real: a tomada da Gotham de assalto para satisfazer um objetivo pessoal.
Bane manipula o caos tal como o Coringa (ao qual o diretor, respeitando o falecimento do singular Heath Ledger, prefere não fazer referência) do filme anterior, contudo o usa de modo organizado, diferente do palhaço psicopata, que, como tal, tinha o desejo de destruir os sistemas políticos e sociais de Gotham para provar a corrupção dos cidadãos. Já Bane os usa (oferecendo-os o que desejam, destituindo a riqueza das elites), ofuscando a veracidade de seu projeto - suscitar a queda do morcego.
Também Bale, recentemente premiado com um Academy Awards, demonstra-se o melhor Batman - não somente dessa trilogia, mas da história do protagonista no cinema. Se nos dois títulos anteriores a moldagem da personalidade de Bruce se sustentava bastante no roteiro, agora Christian incorpora todas as guerras psicológicas dessa queda e a luta para retornar ao topo - ato (exibido numa encenação alegórica) cujo final passo é abalizado na fé, realizado sem as amarras da pusilanimidade e medo de modo que ocorra, numa comparação com o mito platônico da caverna, a transposição das trevas da inaptidão e idoneidade à luz da restituição e do ressurgimento.
Ato necessário para que Wayne, uma vez vestido como o herói, possa incitar a justiça nas pessoas. Inclusive na ladra Selina - interpretada numa das melhores atuações de Anne Hathaway, cuja gestualidade felina (com espetaculares movimentos acrobáticos não-apelativos e muito realísticos) e perfeita sintonia (antitética, porém adequada) com o astro principal tornam a Mulher-Gato de Nolan a melhor transposição da anti-heróina das HQs para as telonas.

Ato necessário para que Wayne, uma vez vestido como o herói, possa incitar a justiça nas pessoas. Inclusive na ladra Selina - interpretada numa das melhores atuações de Anne Hathaway, cuja gestualidade felina (com espetaculares movimentos acrobáticos não-apelativos e muito realísticos) e perfeita sintonia (antitética, porém adequada) com o astro principal tornam a Mulher-Gato de Nolan a melhor transposição da anti-heróina das HQs para as telonas.
Toda a intuição simbólica do cavaleiro das trevas de inspirar os cidadãos é realizada no policial John Blake, do promissor ator Joseph Gordon-Levitt; sua personalidade é magistralmente construída com o transcorrer da trama, evidenciando suas habilidades e crenças num ideal de justiça, fazendo, destarte, com que John ganhe enorme foco no longa, deixando-nos o sentimento de que ele sempre esteve presente na saga.
As figuras de Wayne, Alfred, Kyle ou Blake são plenamente trabalhadas e lapidadas por Chris Nolan, que deixa os mistérios da história em segundo plano para tanto. Nota-se, por conseguinte, uma nova revolução feita pelo diretor (e aqui roteirista) dentre os filmes comerciais, parecida com a que ocorreu na literatura germânica setecentista nas mãos do autor J.W. Goethe - que, em suas obras, passou a analisar os traços típicos e anseios interiores das personagens, ao contrário da análise linear predominantemente realizada por outros romancistas da época.
Logo, é trunfo de Nolan conduzir, harmônica e primorosamente, o filme de modo a não cansar o espectador durante as duas horas e quarenta e cinco, aproximadamente, de apresentação; esta realizada usando (durante quase toda a primeira hora inicial) a tecnologia de filmagem IMAX - a qual, ao mesmo tempo representando um progresso, é tradicionalista: tenta efetuar a - tão aclamada - imersão do espectador na tela, que o 3D por vezes falha em realizar, porém usando a película ao invés do digital, ou seja, projetando as imagens a partir de fita, que resulta numa (hoje quase extinta) iluminação proveniente da cabine de projeção no cinema. A mudança para o digital, segundo o próprio diretor, ocorre por motivos exclusivamente financeiros e não artísticos.
A preocupação com o tradicional semelhantemente se apresenta nas mais impressionantes sequências do filme (como as que envolvem o impressionante veículo voador The Bat, sincronizadas lutas com Batman e Mulher-Gato, épicas batalhas campais num cenário contemporâneo e perseguições que até fazem referência a série de televisão de 1966), reunindo espetaculares efeitos especiais - estes manufaturados (outro exemplo do rigor que tem Nolan quanto ao classicismo da Sétima Arte), salvo pequenas exceções - com prima fotografia, natural maquiagem, apropriado figurino (desde indumentárias vestidas por Anne Hathaway ou Tom Hardy, incluindo sua máscara like-a-Darth Vader, à elegantes roupas como as da atriz Marion Cotillard ou de Lucius Fox, o inventor de importante e - como sempre - carismático papel caracterizado por Morgan Freeman) e impecável fundo musical: mais excelente dos três longas, de 2012 e um clássico entre os que compõe o premiado currículo do compositor Hans Zimmer.
Tamanho esmero com relação aos aspectos técnicos (que leva ao delírio os boquiabertos espectadores) trará, sem dúvida, pelo menos quatro oscars a "O Cavaleiro das Trevas Ressurge". E, nessa última palavra do título, encontra-se eixo no qual se funda a rotação dessa inesquecível experiência cinematográfica...
Considerações Finais
Nolan, desde 2005, propôs-se a estabelecer uma nova metodologia cinematográfica ao dirigir a saga que a ele fora (ainda que houvesse hesitação) confiada - abordagem que derrubaria tudo o que havia sido pensado sobre os filmes não-cults, método a fim de construir um novo tipo de produção, de erguer ideias artísticas para analisar a ficção de um ponto de vista real, criando personagens dramáticos, histórias ricas e bem conduzidas. Na realidade, o diretor desejava fazer essas ideias ressurgirem - um renascimento da originalidade cinematográfica das ficções do século XX.
E, concluindo hoje a trama na qual transmitiu essas ideias, transforma seu Batman num princípio definindo a justiça que caracteriza o herói - alguém que, independentemente de vestir o manto do morcego, com pequenas ou grandes atitudes, serve de exemplo às pessoas, levando-as à equidade e retidão.
Essa é a criação de Christopher Nolan, cineasta que deixa sua assinatura profundamente marcada entre os grandes nomes que consagram o alto cinema hollywoodiano, ao mesmo tempo que abre um leque de possibilidades para continuar essa épica Odisseia do homem-morcego com o melhor filme do ano.
Como expõe Nolan em "Begins", não é o que se é por dentro, mas sim o que faz, que o define. E Batman, que eterniza-se como símbolo e vive profundamente na memória daqueles a quem inspirou, define-se como um cavaleiro das trevas - vigilante cuidadoso que não se finda, mas que ressurge.
Essa é a criação de Christopher Nolan, cineasta que deixa sua assinatura profundamente marcada entre os grandes nomes que consagram o alto cinema hollywoodiano, ao mesmo tempo que abre um leque de possibilidades para continuar essa épica Odisseia do homem-morcego com o melhor filme do ano.
Como expõe Nolan em "Begins", não é o que se é por dentro, mas sim o que faz, que o define. E Batman, que eterniza-se como símbolo e vive profundamente na memória daqueles a quem inspirou, define-se como um cavaleiro das trevas - vigilante cuidadoso que não se finda, mas que ressurge.
Crítica de Murillo Jaf.
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